Denunciação da lide nas ações de erro médico: uma crítica ao atual posicionamento do STJ

Por Lisandra Blanco

A denunciação da lide, de acordo com Cássio Scarpinella Bueno, é a modalidade de intervenção de terceiros pela qual o autor e/ou o réu (denunciantes) formulam, no mesmo processo, pedido de tutela jurisdicional em face de terceiro (denunciado), viabilizando desde logo, o exercício de eventual direito de regresso em face dele na eventualidade de virem (autor e/ou réu) a sucumbir em juízo.

Trata-se de um instituto muito antigo, que se desenvolveu a partir dos direitos romano e germânico primitivo. 

No direito romano, tal instituto era o instrumento por meio do qual se dava ao denunciado o conhecimento da existência de um litígio e era obrigatório para, no caso de sucumbência, este denunciado propor ação de regresso, o que só era possível posteriormente e de forma autônoma.

No germânico primitivo, a denunciação da lide também era obrigatória, porém, o denunciado substituía o denunciante no processo, assumindo a sua posição e, promovendo, desde logo, a ação de regresso. Verificava-se aqui a preponderância dos princípios da celeridade e da economia processual, uma vez que era resolvido, em uma única instrução processual e sentença, a matéria do litígio principal e secundário.

Diversos países incorporaram em suas legislações o instituto da denunciação da lide, dividindo-se, preponderantemente, entre as correntes romana e a germânica primitiva. No Brasil, a denunciação da lide foi prevista pela primeira vez no Regulamento 737, de 1850, sob a denominação de chamamento à autoria, com as características romanas das Ordenações do direito português. 

Em 1939, com o advento do Código de Processo Civil, o instituto da denunciação da lide foi incluído em seu texto, no art. 95, dentro do capítulo da Intervenção de terceiros, no entanto, continuou com a denominação de chamamento à autoria, assim como ocorreu no Regulamento 737, de 1850. De acordo com o CPC de 1939, este instituto estava ligado à evicção, tendo seus limites bem restritos, sendo condição necessária para a propositura de ação de regresso. 

Finalmente, com o Código de Processo Civil de 1973, o chamamento à autoria mudou de denominação e passar a ser chamado de denunciação da lide. Nesse código, o instituto aproximou-se mais do direito germânico primitivo, uma vez que dava ênfase ao dever da assistência processual, com o intuito de auxiliar na defesa do denunciante e, ao mesmo tempo, na possibilidade de propositura de ação regressiva.

Entretanto, com o passar do tempo, ficou evidente que o caráter indenizatório da denunciação da lide se sobressaiu em relação ao caráter da defesa do denunciante, ficando mais perto novamente do direito romano.

No CPC de 73, a denunciação da lide estava prevista nos artigos 70 a 76 e sua característica marcante era a obrigatoriedade, nas hipóteses previstas em lei, caso a parte desejasse que a sentença fosse prolatada tanto em relação à causa principal quanto ao direito de regresso contra terceiro.

Segundo Humberto Theodoro Junior, a denunciação da lide, no CPC de 73, em regra, era prevista para todas as causas do processo de cognição, independente da natureza do direito material e do procedimento da ação. Porém, ressalvava-se os casos submetidos ao procedimento sumário, exceto quando estes fossem fundados sob contrato de seguro, nos termos do art. 280 do CPC .

Além da vedação existente no CPC de 73, que hoje em dia não se faz mais presente em razão da extinção do procedimento sumário, uma vez que o mesmo não foi acolhido pelo Código de Processo Civil de 2015, existe a vedação do Código de Defesa de Consumidor, disposta em seu art. 88.

Assim, ficou consagrado o não cabimento da denunciação da lide em ações de reparação de danos decorrentes de relação de consumo, nas hipóteses do artigo 13, do Código de Defesa de Consumidor, ficando assegurado o direito de regresso por meio de ação autônoma.

Ocorre que, em 2012, a Terceira Turma do STJ, ao julgar o REsp 1.165.279-SP, decidiu que a vedação à denunciação da lide prevista no artigo 88 do CDC não se restringe apenas à responsabilidade de comerciante por fato do produto (artigo 13), sendo aplicável também nas demais hipóteses de responsabilidade civil por acidentes de consumo (artigos 12, 14 e 17 do CDC). 

Ou seja, o STJ passou a considerar que a vedação à denunciação não é restrita somente à responsabilidade do comerciante por fato do produto, sendo aplicável também nos casos de defeito na prestação do serviço (artigo 14 do CDC). E esse tem sido o entendimento do STJ até os dias atuais.

O novo Código de Processo Civil de 2015 trouxe o instituto da denunciação da lide, em seus artigos 125 a 129, dentro do título Intervenção de terceiros, seguindo os Códigos de 1939 e 1973.

A grande inovação trazida é a ausência de obrigatoriedade da denunciação da lide, o que antes era imperativo para os casos de exercício do direito de regresso. Isso se extrai do próprio caput do art. 125, que dispõe que a denunciação é admissível e não mais obrigatória, como era na vigência dos Códigos de 1939 e 1973.

Desta forma, o direito de regresso, por meio de ação autônoma, ficou garantido nos casos em que a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for permitida.

No art. 125 constam os casos em que a denunciação da lide é permitida e são eles: I. ao alienante imediato, no processo relativo à coisa cujo domínio foi transferido ao denunciante, a fim de que possa exercer os direitos que da evicção lhe resultam; e, II. àquele que estiver obrigado, por lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo de quem for vencido no processo.

Destarte, com base do inciso II, do art. 125, a denunciação da lide é permitida toda vez que existir alguma relação jurídica, convencionalmente ou imposta pela lei, que garante um determinado proveito econômico a alguém, mesmo diante da ocorrência de dano.

Dentro desse inciso poderiam se enquadrar perfeitamente os casos de denunciação da lide dos médicos nas ações fundadas em erro médico propostas apenas em face dos hospitais e de operadoras de saúde.

Contudo, é importante fazer a distinção entre 2 tipos de serviços prestados pelos hospitais: 

quando os hospitais atuam como hotelaria, sendo suas dependências utilizadas pelos médicos por meio de aluguéis de centro cirúrgicos, por exemplo, não existindo qualquer vínculo empregatício ou subordinação entre o médico e o hospital; e,

quando os hospitais atuam como fornecedores de serviços médicos, prestando seus serviços por meio de médicos pertencentes ao seu corpo clínico.

Além disso, é relevante destacar a atuação das operadoras de saúde, uma vez que essas não prestam serviços médicos, atuando apenas como mera pagadora dos custos de tratamentos de seus beneficiários, nos termos do contrato e dos procedimentos obrigatórios estabelecidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS.

Diante das situações antes mencionadas, é necessário, também, apontar duas espécies de responsabilidade civil, uma atribuída ao profissional médico responsável pelo atendimento, de ordem subjetiva, sendo necessária a prova da conduta culposa do agente causador da dano, e outra, do hospital ou clínica responsável pelo atendimento, da operadora, de natureza objetiva, dispensada a prova da culpa, bastando, para a responsabilização, a prova do serviço defeituoso e do dano experimentado.

É do conhecimento de todos que, tratando-se de responsabilidade civil subjetiva, forçoso se faz o cumprimento dos requisitos dos artigos 186 e 927 do Código Civil, quais sejam, a existência do ato ilícito, da culpa do agente, nexo de causalidade entre a sua atitude e o prejuízo sofrido, e o dano. Com efeito, tem-se que a responsabilidade civil médica relativamente ao serviço prestado por profissional liberal é, em princípio, subjetiva, assumindo uma obrigação de meio, salvaguardadas as exceções descritas pela doutrina e jurisprudência (v.g. , cirurgiões estéticos, tratamentos odontólogos etc.). 

Por outro lado, a responsabilidade civil das instituições hospitalares e operadoras é objetiva, fundada no Código de Defesa do Consumidor – CDC. Isso porque, ao oferecerem no mercado de consumo serviços de assistência médica e hospitalar mediante remuneração, estas sujeitam-se à legislação consumerista e, designadamente, à disciplinado art. 14, §§ 1º a 4º, do CDC

Nos ensinamentos de Sérgio Cavalieri Filho, a responsabilidade médico hospitalar deve ser examinada por dois ângulos distintos. Em primeiro lugar, a responsabilidade decorrente da prestação de serviço direta e pessoalmente pelo médico como profissional liberal.  E, em segundo lugar, a responsabilidade médica decorrente da prestação de serviços médicos de forma empresarial, aí incluídos hospitais, clínicas, casas de saúde, bancos de sangue, laboratórios médicos etc. Portanto, demandados, devem estar presentes ao caso concreto, o ato ilícito (defeito na prestação do serviço), o nexo de causalidade e o dano.

Ocorre que em qualquer dos casos acima citados, nos termos do art. 14 do CDC, quando houver uma cadeia de fornecimento para a realização de determinado serviço, ainda que o dano decorra da atuação de um profissional liberal, verificada culpa deste, nasce a responsabilidade solidária daqueles que participam da cadeia de fornecimento do serviço.

Cabe mencionar, ainda, o profissional não pertencente ao quadro de staff de um hospital e, também, não credenciado a uma operadora. Trata-se de profissional contratados de forma particular, de livre escolha e de confiança do paciente, que utiliza as instalações de um hospital apenas para realizar determinado procedimento médico.

Na hipótese de profissional não pertencente ao quadro de staff de um hospital e, também, não credenciado a uma operadora, a jurisprudência tem entendido que existe um rompimento da solidariedade entre o médico e hospital/operadora, uma vez que a responsabilidade objetiva para o prestador do serviço, prevista no artigo 14 do CDC, é limitada aos serviços relacionados ao estabelecimento empresarial, tais como, no caso de hospital, à internação, instalações, equipamentos e  serviços auxiliares. 

Entretanto, o STJ, infelizmente, não reconhece a possibilidade de denunciação da lide nas ações de erro médico, em qualquer situação, por entender que tais ações versam sobre relação de consumo e, ainda, que a denunciação implica em uma maior dilação probatória, gerando a produção de provas talvez inúteis para o deslinde da questão principal, de interesse do consumidor.

Ocorre que o entendimento do STJ é contraditório, pois ao mesmo tempo que entende que a denunciação da lide acarreta uma delonga do processo para que se produzam as provas relativas à conduta do profissional e esta demora não pode ser suportada pelo paciente, os hospitais e operadoras apenas são responsabilizadas com a apuração da conduta do médico. 

Ou seja, o fundamento do STJ para o afastamento da denunciação da lide nas ações de erro médico não é plausível, uma vez que a prova para averiguação da culpa do profissional sempre é realizada, em quase 100% das vezes por meio da prova pericial médica, independentemente da existência ou não de uma demanda secundária.

Outra contradição existente versa em relação aos casos de profissionais não pertencentes ao quadro de staff de um hospital e, também, não credenciados a uma operadora, onde o próprio STJ tem entendido que existe um rompimento da solidariedade entre o médico e hospital/operadora. Ora, se existe o rompimento da solidariedade entre o médico e hospital/operadora, qual seria a impedimento do deferimento da denunciação da lide ao médico nesses tipos de casos, quando esses não são demandados?

Ademais, com a possibilidade da denunciação da lide nas ações que versam sobre erro médico, resolvendo-se a lide principal e secundária numa única sentença, haverá, sem sombra de dúvida, uma economia processual, sendo desnecessário acionar posteriormente o judiciário por meio de uma ação autônoma, uma vez que toda instrução probatória já foi realizada.

Além disso, pode-se destacar que o médico-denunciado  também tem o condão de auxiliar o denunciante em sua defesa, uma vez que este tem interesse que a demanda principal seja julgada improcedente, fazendo com que a demanda secundária seja inviabilizada e, assim, fique impossibilitado de efetuar eventual ressarcimento ao denunciante. 

Frisa-se que uma das consequências da proibição da denunciação de lide nas ações de erro médico é a alegação, em eventual ação individual de regresso, de cerceamento de defesa por parte dos profissionais, em razão de os mesmos não terem participado da instrução probatória da ação pretérita. O que levaria a realização de uma nova prova pericial, gastando-se mais tempo do judiciário e dinheiro das partes envolvidas.

Por derradeiro, cabe destacar o posicionamento do autor Sebastião Jurandir sobre o tema em comento,  que assevera que os serviços de saúde formam um complexo envolvendo a atividade médica e hospitalar, complexo esse que deve se submeter, homogeneamente ao regime de apuração da culpa, à luz do sistema estabelecido pelo art. 951 do Código Civil e pelo art. 14, § 4º, do Código do Consumidor. 

Prossegue narrando que, em vez de insistir a jurisprudência numa responsabilidade puramente objetiva dos hospitais, o mais justo, seria reconhecer que ambos – médico e hospital – respondem, diante dos danos suportados pelos pacientes e internos, mediante presunção de culpa, mas todos eles deveriam ter resguardado o direito de provar, em função da inversão do encargo probatório previsto no CDC, que cumpriram corretamente o contrato de saúde, com o empenho exigível do médico, e com o cumprimento, pelo hospital, das obrigações profiláticas preventivas e de assistência médica ao paciente internado.

Diante de todo o exposto, podemos concluir, ao avesso do posicionamento do STJ, a possibilidade da denunciação da lide nas ações de erro médico, em virtude de a própria jurisprudência sobre o tema entender que existe a necessidade de apuração da culpa do agente causador para a responsabilização dos hospitais e operadoras, ainda que esses agentes não estejam incluídos no polo passivo da demanda.

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