Seguro de Vida – Hipótese de beneficiário pré-morto – Solução a ser adotada para pagamento do capital segurado – Inteligência do art. 792 do CC
Por Talita Portilho
Inicialmente é importante destacar que o seguro de vida tem por objetivo principal a proteção social, já que contribui para amenizar as condições financeiras desfavoráveis que o segurado ou seus beneficiários poderão enfrentar, no caso da ocorrência de um evento estabelecido no contrato.
Ao celebrar o negócio jurídico com a seguradora, o proponente define as coberturas que pretende contratar visando o pagamento de capital em decorrência de morte ou de invalidez e, ainda, designa a(s) pessoa(s) que receberá(ão) o capital segurado na ocorrência do sinistro.
O beneficiário, no seguro de vida, é a pessoa indicada pelo segurado para receber o capital segurado fixado na apólice em caso de seu falecimento, seja ele por causa natural ou acidental. É, portanto, aquele que detém o legítimo interesse sobre o bem da vida presente na relação jurídica securitária.
A indicação de beneficiário ocorre livremente e, em regra, no momento da formação do contrato, podendo, contudo, ocorrer posteriormente. Ao segurado é lícito indicar qualquer pessoa como beneficiário, sendo permitido ainda, alterar a indicação a qualquer tempo, no decorrer da relação contratual, sem expor qualquer motivação para o exercício dessa vontade.
De acordo com o art. 793 do Código Civil, é vedada nomeação de beneficiário companheiro(a) quando o segurado, ao tempo da contratação, for casado e não separado judicialmente ou de fato.
A alteração de beneficiário é direito potestativo do segurado, cabendo à seguradora, tão somente, acatar sua disposição de última vontade, regulando o sinistro de acordo com ela, em caso de morte do segurado principal.
Ainda, consoante disposição do parágrafo único do art. 791 do Código Civil, o beneficiário legitimado ao recebimento do capital segurado contratado é sempre o último formalmente informado, de modo que, na ausência de comunicação de substituição, fica a seguradora desobrigada a qualquer outro pagamento que não seja àquele inicialmente informado.
Não obstante a faculdade do segurado nomear livremente o beneficiário por ato de última vontade, é possível que este opte pela não nomeação de qualquer pessoa, ou se por qualquer motivo não prevalecer a indicação anteriormente realizada, prevalecerá o regramento preceituado no art. 792 do Código Civil, in verbis:
“Art. 792 Na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, ou se por qualquer motivo não prevalecer a que for feita, o capital segurado será pago por metade ao cônjuge não separado judicialmente, e o restante aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem da vocação hereditária.
Parágrafo único. Na falta das pessoas indicadas neste artigo, serão beneficiários os que provarem que a morte do segurado os privou dos meios necessários à subsistência.”
Na circunstância acima destacada aplica-se a ordem da vocação hereditária prevista no art. 1.829 do Código Civil, qual seja, o capital segurado será dividido entre o cônjuge (aqui se equiparando, também, o companheiro ou convivente de união estável) não separado judicialmente (se houver), na proporção de 50% (cinquenta por cento), e os herdeiros legais, na ordem da vocação hereditária, nos 50% (cinquenta por cento) restantes.
No presente artigo abordaremos relevante divergência quanto à incidência ou não da regra do mencionado dispositivo legal para a hipótese de beneficiário pré-morto, sem posterior alteração da indicação pelo segurado.
Ao comentar o art. 792 do Código Civil, José Augusto Delgado[1] trouxe as seguintes elucidações:
“O segurado não está obrigado, no seguro de vida, a indicar a pessoa ou beneficiário que irá receber o capital segurado. Pode ocorrer, também, que o segurado indique beneficiário e não prevaleça o seu ato, por circunstâncias de fato previstas em lei. Um dos motivos para que o seguro fique sem beneficiário é o de este vir a falecer. A estipulação em favor do beneficiário, por gerar, apenas, uma expectativa de direito, não se transfere aos seus herdeiros. Ela se esgota ocorrendo o falecimento de quem foi escolhido, pelo segurado, para receber o capital segurado.
(…)
A expressão “se por qualquer motivo não prevalecer” deve ser compreendida com a extensão que o legislador lhe empresta, por não ter optado por detalhar ou impor alguma restrição.
Os motivos determinantes para não prevalecer a vontade do segurado na designação do beneficiário são, além da morte do beneficiário antes do sinistro, os seguintes (…)”
Seguindo esta linha interpretativa, Orlando Gomes[2] assim ponderou:
“No seguro de vida que encerra estipulação em favor de terceiro, o segundo designa a pessoa que deve receber o seguro, quando se torne exigível. A designação do beneficiário pode ser feita concomitantemente ou depois da celebração do contrato. Quando falta, a lei supre a vontade do segurado, determinando que o seguro seja pago a pessoa de sua família. Por lei, deverá ser atribuído metade à mulher e metade aos herdeiros e, na falta desses beneficiários, a quem o reclamar provando que a morte do segurado o privou de meios para sua subsistência.
[…]
Na designação do beneficiário há limitação quanto às pessoas. Assim, não pode ser instituído quem for legalmente proibido de receber doação do seguro. Está nesse caso o cúmplice do cônjuge adúltero. Nessa hipótese, decai o beneficiário. O contrato de seguro no qual se designe beneficiário pessoa proibida de receber o seguro seria anulável. Tem-se admitido, contudo, que tal designação é como se não fosse escrita, caindo-se, em consequência, na hipótese da falta de declaração. Assim, o seguro será pago aos herdeiros do segurado e à sua mulher, nos termos do que dispõe a lei”
Consideremos a seguinte situação: o segurado indica como beneficiários pela cobertura de morte sua esposa e seus dois filhos, na proporção de 30%, 35% e 35%, respectivamente. Ocorre que o cônjuge vem a óbito, não tendo o segurado alterado junto à seguradora os beneficiários do seguro. Tempos depois, ao falecer, o segurado deixa uma companheira de união estável e seus dois filhos, já indicados como beneficiários.
Por este prisma, a vontade manifestada pelo segurado não pode ser atendida diante da existência de beneficiário pré-morto, ficando atraída a norma do art. 792 do Código Civil, motivo pelo qual 50% do capital segurado deve ser destinado à companheira e os outros 50% aos dois filhos do segurado, em partes iguais.
Sob esta interpretação, o percentual de 30% anteriormente indicado à antiga esposa do segurado não deve ser pago aos herdeiros da falecida, sob o fundamento de que seguro de vida não é herança, com supedâneo no art. 794 do Código Civil.
À guisa de ilustração, a 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no julgamento da apelação nº 1.0024.10.197299-0/001, firmou o posicionamento de que “uma vez que a vontade do segurado não pode ser cumprida, qual seja a de que todos os beneficiários por ele indicados na apólice recebessem o seguro, em decorrência da morte de dois deles, aplicar-se-á o disposto no art. 792 do CCB, devendo o montante referente aos valores devidos aos dois indicados reverter em benefício de seu único filho menor e não da única beneficiária sobrevivente que já recebeu a sua cota parte.”
A solução para tal hipótese não é pacífica. Há uma corrente que defende que a indicação do beneficiário pré-morto seria inexistente, figurando apenas os demais beneficiários indicados, de modo que o capital segurado deve ser dividido em partes iguais entre eles, aduzindo que o art. 792 do Código Civil incide apenas caso não persista designação eficaz.
Neste sentido foi o voto vencedor no julgamento do Recurso Especial nº 803.299 – PR, que assim decidiu: “No caso, por ocasião do falecimento da segurada permanecia eficaz a designação de três dos quatro beneficiários. Portanto, aqueles devem receber por inteiro a quota à que fazem jus, dividindo entre eles o percentual que seria do beneficiário pré-morto.”
Seguindo semelhante linha argumentativa, a 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, quando do julgamento da Apelação nº 0707430-79.2017.8.07.0006, e a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando do julgamento da Apelação nº 70059578187, decidiram que “havendo indicação de beneficiários na apólice e, sendo um deles pré-morto por ocasião do falecimento do segurado, os restantes devem receber por inteiro a sua cota parte mais o percentual que seria devido ao beneficiário pré-morto. A aplicação do art. 792 do CC se verifica somente na hipótese de ausência de indicação de beneficiário na apólice do seguro contratado, hipótese não verificada nos autos.”
Em contrapartida, em seu voto vencido no Recurso Especial nº 803.299 – PR, o Ministro Relator Antonio Carlos Ferreira defende que “nesse caso, especificamente quanto ao percentual destinado ao beneficiário falecido (25%), deve ser enquadrada, por equiparação, à hipótese de ausência de estipulação de beneficiário, aplicando-se os dispositivos legais pertinentes em vigor à época dos fatos para efeito de definir a quem será entregue.”, tendo votado pelo reconhecimento do direito de representação da cota parte do beneficiário pré-morto, na qualidade de herdeiro da segurada, em observância ao art. 794 c/c art. 792, ambos do Código Civil.
Por todo o elucidado, resta evidente que a doutrina e jurisprudência estão uníssonas quanto à interpretação do art. 792 do Código Civil, de modo que a melhor solução emprestada às seguradoras, quando se deparam com sinistro envolvendo beneficiário pré-morto, é a propositura de ação de consignação em pagamento do valor relativo ao capital segurado da cobertura por morte, para que o Poder Judiciário se posicione quanto aos beneficiários legais e suas respectivas cotas partes.
[1] In Comentários ao Novo Código Civil, Volume XI, Tomo I, Editora Forense, 2004, páginas 736/737.
[2] In Contratos. 11ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1986, págs. 478/479.