Nunca se inflamou tanto o debate sobre os diferentes tipos de corrupções no Brasil como nos últimos anos. A exposição contínua dos casos de sordidez em distintas esferas de poder deixou a população em constante estado de alerta para novos episódios e sua consequente repercussão.
Em decorrência desse cenário, é importante e esperado que ocorra também uma reflexão acerca dos diferentes costumes e ter ciência de que a sujeira vai muito além da classe política. Está presente nas relações diárias, sejam pessoais ou corporativas. Na saúde, infelizmente, não é diferente e as discussões sobre a transparência no âmbito da medicina têm sido cada vez mais fomentadas em vários meios. Isso porque os deslizes de conduta no setor vão muito além dos conhecidos desvios de verbas públicas e estão presentes nas relações entre os agentes da cadeia, pública ou privada. O prejuízo também sobrepuja os danos à saúde do paciente e acarreta prejuízos a todo o setor.
Já se tornou quase um clichê da área, mas não dá pra fugir do assunto: a falta de transparência se configura como um empecilho para seu melhor desenvolvimento. É, portanto, essencial o debate sobre o tema, sejam nas esferas responsáveis pelas tomadas de decisão ou ainda para que a sociedade conheça as catastróficas sequelas para toda a saúde nacional.
Foi exatamente com o propósito de mitigar problemas do mercado e municiar tanto o sistema quanto a sociedade que, nos Estados Unidos, a legislação em prática desde 2013, conhecida como Sunshine Act exige, por exemplo, que empresas divulguem por meio de um site o quanto pagaram aos profissionais de saúde e o porquê dessas remunerações. Pensada durante o Affordable Care Act (ACA), popular “Obamacare”, a iniciativa buscou tornar essas relações mais éticas e transparentes – em especial no que tange aos vínculos financeiros.
Por lá, criou-se um comprometimento entre hospitais, profissionais e indústrias em relatarem ao estado norte-americano os valores de insumos gastos e pagos. Por meio disso, o estado tem subsídios para fazer análises e revisões dos números, verificando se estão dentro do padrão aceitável. Não precisa ser especialista para ter noção da valia do projeto para o setor e a sociedade: se o primeiro se beneficia com ganho de eficiência em toda a cadeia, com maior responsabilidade e combate ao desperdício, a segunda se municia de poderosas informações sobre as relações dos vários agentes. Todos ganham com isso. Afinal, qualquer cidadão gostaria de saber se seu médico recebe benefícios de diferentes fornecedores e de esclarecer possíveis conflitos de interesse. Claro que não se trata de colocar os profissionais sob suspeita mas, sim, aprimorar a transparência das relações.
Para se ter uma dimensão do imbróglio, trabalho realizado pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) revelou que aproximadamente 19% dos gastos assistenciais da saúde suplementar no País são consumidos por desvios de conduta e desperdícios. O montante chegou na casa dos R$ 25,5 bilhões em 2016.
Não faltam números e exemplos que reforcem os déficits do mercado nacional. O mais evidente foi a chamada “Máfia das Órteses”, com diversas denúncias que geraram Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional. No episódio, ao menos 33 médicos atuantes em São Paulo foram investigados pelo Conselho Regional de Medicina do estado (Cremesp) por suspeita de receber comissões de empresas fabricantes de dispositivos médicos. Esse episódio também gerou o ingresso de nove ações judiciais contra os fabricantes desses materiais nos Estados Unidos da América.
Mesmo que se argumente que a questão tem outras raízes e seja um fenômeno de âmbito global, suas consequências são ainda mais desastrosas pelas falhas da legislação nacional. É, portanto, com muito bons olhos que se deve receber iniciativas como a do Estado de Minas Gerais, que deu importante passo para tornar as relações na indústria farmacêutica mais transparentes ao promulgar a Lei nº 22.440, de 21/12/2016, regulamentada pelo Decreto nº 47.334, de 29/12/2017.
De modo inédito no País, a lei determina que empresas que atuam na fabricação, distribuição e comercialização de produtos médicos como órteses, próteses, medicamentos, implantes e outros, deverão comunicar a Secretaria de Estado de Saúde – SES de Minas Gerais – quaisquer doações ou benefícios dados aos profissionais de saúde. Isso inclui consultoria e palestras, passagens, hospedagens, brindes, inscrições em eventos, financiamento de pesquisas e se estende a todos aqueles com registro em conselho de classe e até mesmo aos seus familiares, convidados e acompanhantes.
Isoladamente, a iniciativa representa um enorme avanço, mas ainda está longe de resolver as complicadas relações em todo o segmento. O complexo sistema da cadeia de saúde nacional acaba por criar perversos incentivos que contaminam as distintas tomadas de decisão, resultando em um serviço mais dispendioso e, muitas vezes, com menor qualidade.
Claro que qualquer iniciativa que representa avanço na transparência é bem-vinda. É necessário, contudo, que se criem mecanismos para a criminalização adequada, tratando práticas abusivas como atos criminosos mediante a comprovação da culpa.
A longa agenda de medidas passa por velhos conhecidos do setor, como a modernização dos modelos de pagamento, melhor uniformização e padronização para dispositivos médicos, entre outros. A mudança de mentalidade e perfil dos agentes da cadeia já é um primeiro passo. Se já é cada vez mais debatida a necessidade de evolução quanto à questão, é fundamental que mais ações saiam do papel para avançar em soluções em prol do desenvolvimento do setor.