Abner Brandão Carvalho e Mateus Pineli
Em dezembro do ano passado, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu o primeiro alerta a respeito do que uma misteriosa pneumonia, originária da cidade de Wuhan.[2] Desde então, o SARS-CoV-2, vírus por trás da Covid-19, já infectou mais de 390 mil pessoas no mundo, vitimando mais de 17 mil.[3] Estes números são observados na penúltima semana de março de 2020.
Não há cura conhecida para a Covid-19 e uma vacina viável ao uso demorará, no mais otimista dos cenários, cerca de um ano ou um ano e meio, segundo o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA (Niaid), Anthony Fauci.[4] Ferguson et al. salienta que a Covid-19 é a mais séria ameaça à saúde pública por vírus respiratório desde a pandemia de gripe espanhola, em 1918.[5]
Sem terapias eficazes no combate à Covid-19, abre-se espaço às chamadas intervenções não-farmacêuticas ou non-pharmaceutical interventions (NPIs). Tais medidas têm como objetivo a redução das taxas de transmissão do vírus, pelo distanciamento social.[6] Segundo o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, a testagem e o isolamento são fundamentais para a quebra da cadeia de transmissão.[7]
Ainda de acordo com Fergoson et. al., o isolamento dos casos e a quarentena domiciliar, juntamente com o distanciamento daqueles na faixa etária de risco, bem como dos portadores de doenças crônicas, reduzirá, consideravelmente, o número de óbitos ao final desta pandemia, seja pela adoção da estratégia de mitigação ou da supressão.[8]
É preciso ficar em casa, portanto. E, neste sentido, inúmeras empresas e escritórios já operam em regime de teletrabalho e os governos estaduais vêm restringindo o funcionamento de estabelecimentos comerciais, ressalvados os que sejam relacionados a serviços tomados como essenciais. As instituições de saúde são exemplos destes serviços essenciais e, a exemplo do que se observa na China e na Itália, os médicos são, a cada dia, mais empurrados na direção do centro da pandemia.
Diante do cenário de urgência global, que foi sendo rapidamente desenhado, o Ministério da Saúde baixou a Portaria nº 467/2020, que dispõe sobre as ações de telemedicina. Além de se amparar na notória emergência em saúde pública de importância nacional, declarada pela Portaria nº 188/GM/MS/2020, o ato se apoia na Resolução nº 1.643/2002 e no Ofício CFM nº 1.756/2020 – COJUR.
Na telemedicina, a relação médico-paciente é intermediada por meio de instrumentos tecnológicos. Discute-se sua regulamentação no Brasil, há tempos e, neste momento em que há recomendações de se evitar aglomerações e não buscar os prontos socorros dos serviços de saúde, a não ser quando a medida seja indispensável, este tipo de atendimento médico remoto surge como um aliado à quebra da cadeia de contágio do Covid-19.
Acontece que telemedicina é gênero e comporta algumas espécies/modalidades. O Ofício CFM nº 1.756/2020 – COJUR reconheceu a eticidade, apenas, da utilização das modalidades de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta. De forma breve: na primeira modalidade, fala-se de orientação e encaminhamento de pacientes em isolamento, a segunda trata de monitoramento à distância dos parâmetros de saúde e/ou doença e, na última, diz-se de modalidade que objetiva a troca de informações e opiniões entre médicos, para auxiliar no diagnóstico e na terapia.[9] O reconhecimento mencionado neste parágrafo é, ainda, adstrito ao período que durar a pandemia de Covid-19.
A telemedicina é tratada pelo CFM com certa reserva. Na própria Resolução nº 1.643/2002, balanceia-se as consequências positivas da telemedicina com os “muito problemas éticos e legais decorrentes de sua utilização”.[10] Uma das preocupações do Conselho com relação a este avanço tecnológico, expressa-se pela assertiva de que o médico só deve emitir sua opinião, recomendação ou mesmo tomar decisões se as informações recebidas forem suficientes para tanto.[11] Ainda, há críticas à telemedicina que tocam a “preocupação com os riscos de uma piora no atendimento, com atrasos ou dificuldades no diagnóstico em razão da distância” e o “enfraquecimento da relação de confiança entre médico e paciente”.[12] Além de tudo isso, o Art. 37, do próprio Código de Ética Médica, veda a prescrição de tratamento e outros procedimentos, sem o exame direto do paciente, ressalvados os casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada da realização do exame.[13]
Outra modalidade dentro da telemedicina é a teleconsulta, não contemplada pelo Ofício do CFM. A propósito e apenas a título de informação, a Resolução nº 2.227/2018, definia, como premissa da teleconsulta, “prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente”, o que parecia mitigar o pesado caráter de antieticidade desta modalidade de telemedicina, já que o contato presencial com o paciente existiria, ainda que de forma espaçada.[14] A Resolução em comento foi revogada em 22 de fevereiro de 2019.[15]
Ocorre que, não obstante o constante do referido Ofício, a Portaria nº 467/2020, ao ser abrangente, acabou por causar certa confusão entre especialistas da área e os próprios profissionais. Isto porque o dispositivo menciona atos médicos típicos de consulta, como atendimento pré-clínico, consulta (em sentido estrito) e diagnóstico, inclusive dispondo sobre a possibilidade de emissão de receitas e atestados médicos.
O fato de o Ofício do CFM não reconhecer a eticidade da teleconsulta pode gerar certa preocupação, por parte dos médicos e médicas, quanto à utilização da referida modalidade de telemedicina, no relacionamento com o paciente. Uma vez que, em termos práticos, a eticidade da teleconsulta não foi reconhecida pelo CFM e o seu uso poderia, em tese, representar uma falta ética. Naturalmente, os Conselhos Regionais de Medicina fazem eco ao posicionamento do Conselho Federal.
Para fins de ilustração, o CRM-ES, ao disciplinar a telemedicina no Espírito Santo, pela Instrução Normativa CRM-ES nº 01/2020, admite a possibilidade de estabelecimento de “canais de orientação médica que objetivem esclarecimentos e orientações preventivas relacionadas a pandemia do COVID19”,[16] sendo que os atos médicos “desenvolvidos nesse enfrentamento que, porventura, sejam objeto de questionamento, serão avaliados pelo CRM, que levará em consideração todo esse contexto”. O CREMESP, por seu turno, ao mesmo tempo em que reconhece a excepcionalidade da situação, reforça a autorização da assistência médica à distância nas condições de telorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta.[17] O mesmo tom é observado na Resolução CRM/DF nº 453/2020.[18]
Não obstante a implicação acima destacada, reconheça-se que o Brasil encontra-se em um verdadeiro estado de exceção, que urge uma resposta, em termos de Saúde, eficaz, tempestiva e remota. Decerto, a flexibilização da eticidade da telemedicina deve ser concebida como um apoio aos esforços empreendidos pelas políticas públicas de saúde estabelecidas em prol da saúde dos brasileiros.
A recomendação é que o médico e a médica atentem-se a todas os requisitos das ações de telemedicina trazidos pela Portaria, inclusive em teleconsulta, já que não há notícia da flexibilização da eticidade de nenhum dos outros deveres delimitados pelo Código de Ética Médica.
Todo atendimento deverá ser registrado em minucioso prontuário clínico que contenham os dados clínicos pertinentes à boa condução do caso, com preenchimento para cada contato. Atestados e receitas médicas emitidas por meio eletrônico devem passar por validação pelo uso de assinatura eletrônica ou de dados associados à assinatura do médico e a tecnologia utilizada para o contato direto entre o médico e o paciente deve ser capaz de garantir a integridade, a segurança e o sigilo das informações.
Nesse Sentido, Agência Nacional de Saúde Suplementar, após Reunião Extraordinária da sua Diretoria Colegiada, realizada no dia 31/03/2020, firmou o entendimento através da Nota Técnica nº 7/2020/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO que, “… telessaúde é um procedimento que já tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde, uma vez que se trata de uma modalidade de consulta com profissionais de saúde. Dessa forma, não há que se falar em inclusão de procedimento no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, devendo os profissionais observarem as normativas dos Conselhos Profissionais de Saúde e/ou do Ministério da Saúde.”[19] Sendo, portanto, de cobertura obrigatória para seus beneficiários.
Na respectiva reunião, a Diretoria Colegiada da ANS também aprovou por meio das Notas Técnicas nº 3/2020/DIRAD-DIDES/DIDES e nº 4/2020/DIRAD-DIDES/DIDES que, enquanto permanecer a situação de Calamidade Pública na Saúde, não será necessário a alteração e ou adaptação da contratualização entre operadoras e prestadores de serviços para o exercício da Telemedicina, mantendo-se as cláusulas já vigentes nesses contratos, em especial na RN nº 363/2014, desde que exista qualquer outro instrumento (troca de e-mails, mensagem eletrônica através do portal da Operadora) que permita identificar que as partes pactuaram as regras para realização deste tipo de atendimento[20].
Em resumo, as operadoras deverão prever por um desses meios de comunicação com o prestador[21]:
“
- A identificação dos serviços que podem ser prestados, por aquele determinado prestador, por intermédio do tipo de atendimento telessaúde;
- Os valores que remunerarão os serviços prestados neste tipo de atendimento; e
- Os ritos a serem observados para faturamento e pagamento destes serviços.”
Ao final da referida nota técnica, a autarquia determina que essa negociação permita a manifestação de vontade de ambas as partes e informa que essa medida irá perdurar enquanto o país estiver em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), sendo certo que se os atendimentos por meio de telessaúde seguirem autorizados pela legislação e regulação nacional após este período, será necessário ajustar os instrumentos contratuais entre operadoras e prestadores de serviços de saúde”.
A flexibilização da contratualização, adotada pela ANS, é fundamental em tempos de uma pandemia, mas dependerá, sem sombra de dúvidas da flexibilização de inúmeras questões contratuais dessa conturbada relação entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviço, além de uma mudança de hábitos da própria relação médico x paciente, a fim de compatibilizar a telemedicina com o atual momento de isolamento social.
Nosso escritório está preparado para auxiliar nossos clientes e parceiros nesse novo estágio da contratualização no mercado de saúde suplementar, sobretudo no que for necessário a adequação dos stakeholders à regulamentação e ao estado de calamidade pública.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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______. Ofício CFM Nº 1756/2020 – COJUR. 2020. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf. Acesso em 23 mar. 2020..
______. Nota Técnica nº 3/2020/DIRAD-DIDES/DIDES. Disponível em:
______. Nota Técnica nº 4/2020/DIRAD-DIDES/DIDES. Disponível em:
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[2]G1. Cronologia da expansão do novo coronavírus descoberto na China. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/01/22/cronologia-da-expansao-do-novo-coronavirus-descoberto-na-china.ghtml. Acesso em 23 mar. 2020.
[3]BBC. Coronavírus: os sites em tempo real que mostram dados de mortes, curvas de contágio e mutações. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51987873. Acesso em 23 mar. 2020.
[4]OLIVETO, Paloma. Correio Braziliense. Mundo se mobiliza por uma vacina contra o Covid-19, o novo coronavírus. 2020. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2020/03/01/interna_ciencia_saude,831265/mundo-se-mobiliza-por-uma-vacina-contra-o-covid-19-o-novo-coronavirus.shtml. Acesso em 23 mar. 2020.
[5]FERGUSON, Neil M. et. al. Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID-19 mortality and healthcare demand. 2020. Disponível em: https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-College-COVID19-NPI-modelling-16-03-2020.pdf. Acesso em 23 mar. 2020.
[6]Idem.
[7]VALENTE, Jonas. Agência Brasil. OMS quer testes e isolamento de casos suspeitos para conter Covid-19. 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/oms-recomenda-testes-e-isolamento-de-casos-suspeitos-para-conter-covid-19. Acesso em 23 mar. 2020.
[8]FERGUSON, Neil M. et. al. Op. Cit.
[9]CFM. Ofício CFM Nº 1756/2020 – COJUR. 2020. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf. Acesso em 23 mar. 2020.
[10]CFM. Resolução CFM nº 1.643/2002. Define e disciplina a prestação de serviços através da Telemedicina. 2020. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2002/1643_2002.pdf. Acesso em 23 mar. 2020.
[11]Idem.
[12]CONDE E ADVOGADOS. Regulamentação da telemedicina permite avanços na saúde. 2019. Disponível em: https://www.condeadvogados.com.br/br/blog/regulamentacao-da-telemedicina-permite-avancos-na-saude. Acesso em 23 mar. 2020.
[13]CFM. Resolução CFM nº 2.217/2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 (Código de Ética Médica). Aprova o Código de Ética Médica. 2019. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf. Acesso em 23 mar. 2020.
[14]CFM. Resolução CFM nº 2.227/2018. Define e disciplina a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologias. 2018. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/resolucao222718.pdf. Acesso em 23 mar. 2020.
[15]CFM. Conselheiros do CFM revogam a Resolução nº 2.227/2018, que trata da Telemedicina. 2019. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28096:2019-02-22-15-13-20&catid=3. Acesso em 23 mar. 2020.
[16]CRM-ES. Orientações do Comitê de Gerenciamento da Crise. 2019. Disponível em: http://www.crmes.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=21942:2020-03-20-13-22-42&catid=3:noticias&Itemid=462. Acesso em 27 mar. 2020.
[17]CREMESP. Coronavírus: Cremesp reforça divulgação do ofício do CFM que autoriza orientação médica à distância em situações específicas. 2020. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=5584. Acesso em 27 mar. 2020.
[18]LEGISWEB. Resolução CRM Nº 454 de 24/03/2020. 2020. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=391464. Acesso em 27 mar. 2020.
[19] http://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/coronavirus-covid-19/coronavirus-todas-as-noticias/5459-combate-ao-coronavirus-ans-define-novas-medidas-para-o-setor-de-planos-de-saude
[20] http://www.ans.gov.br/images/stories/noticias/pdf/Nota_T%C3%A9cnica_3.pdf
http://www.ans.gov.br/images/stories/noticias/pdf/Nota_T%C3%A9cnica_4.pdf
[21] http://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/coronavirus-covid-19/coronavirus-todas-as-noticias/5459-combate-ao-coronavirus-ans-define-novas-medidas-para-o-setor-de-planos-de-saude