Para uma medicina segura

A prevenção dos eventos adversos na assistência é um esforço da medicina que mobiliza especialistas, pelo menos, desde a década de 80. Uma das iniciativas nesse sentido é a publicação do Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, desde 2017, pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS). O objetivo principal do trabalho publicado em 2018 foi a proposição de prioridades para melhorar a segurança hospitalar no Brasil, tanto na rede pública quanto na rede suplementar.

Para tanto, buscou estimar o efeito dos eventos adversos graves, relacionados com a assistência hospitalar, sobre a mortalidade e custos assistenciais. Os pesquisadores fizeram o levantamento de características da população estudada e epidemiologia dos eventos ocorridos. Foram avaliadas 445.671 altas hospitalares, das quais 78,8% de pacientes da saúde suplementar e 21,2% do SUS.

O que se verificou, entre os pacientes acompanhados, é que houve uma prevalência de eventos adversos de 7,1% nos atendimentos da rede suplementar, de 6,4% nos atendimentos do SUS, e de 7,0% no conjunto da população. Os quadros mais frequentes foram de septicemia, pneumonia, infecção do trato urinário, em geral associados a dispositivos invasivos como cateter vascular central, ventilação mecânica e sondas vesicais, respectivamente.

Os pacientes com maior risco de exposição aos eventos adversos graves são os chamados “extremos de idade”: recém-nascidos prematuros (6,2%) e idosos acima de 65 anos (3,6%). Esses grupos compõem um grupo de maior complexidade e risco assistenciais. Os eventos graves são os principais fatores de mortalidade e, entre os que passam de 50% estão endocardite infecciosa, choque, septicemia e insuficiência respiratória aguda.

O estudo é bastante profundo e poderíamos aprofundar diferentes aspectos, mas o que eu quero destacar com a seleção desses dados é a necessidade de um plano de ação para prevenção de quadros que causam sequelas e morte. A ineficiência do nosso sistema de saúde gera prejuízos financeiros e sofrimentos desnecessários. É passada a hora de superar essas deficiências, que afetam a saúde brasileira como um todo.

A rede hospitalar brasileira é formada por 6.812 estabelecimentos, dos quais apenas 5,38% são verificados e garantidos em sua estrutura e processos por auditoria externa, uma proporção que demonstra o quanto precisamos melhorar para reduzir a insegurança da assistência.

Custo financeiro – Eventos adversos consumiram R$ 10,6 bilhões no sistema privado de saúde, e um dos fatores para o desperdício é o modelo de remuneração utilizado no Brasil, o fee-for-service. Existem alternativas a esse modelo, que abordamos em uma série de artigos, visando remuneração com base em resultados. Experiências de remuneração baseada em DRG nos Estados Unidos permitiram redução do custo médio de internações agudas de longa duração em 24%, no período entre 2003 e 2006.

Deve-se considerar também o impacto em ocupação de leitos-dia para o sistema de saúde. Cada evento adverso grave determina a extensão do período de internação em média em 14,4 dias (16,4 dias para pacientes no SUS e 10,5 dias para pacientes na rede privada). Os prejuízos afetam a todos, tanto os pacientes que precisam de internação e não encontram vaga, quanto aqueles que se expõem a mais riscos em período maior de internação. Para as organizações de saúde, fica claro que há desperdícios e elevação de custos. Do total de 165,9 milhões leitos-dia disponíveis ao ano na rede hospitalar brasileira, e 96,6 milhões leitos-dia utilizados, temos que a taxa de ocupação média foi de 58,2%, ou seja, uma ociosidade de 41,8%.

Redução de óbitos – Entre oportunidades de melhoria sugeridas pelo estudo, abordaremos aqui a proposição de uma meta nacional de segurança assistencial hospitalar, pensando na redução da estimativa de 36.174 óbitos hospitalares nos próximos 10 anos. Para tanto, sugere-se construir um acordo nacional visando a centralidade da saúde das pessoas e prioridade da segurança assistencial e sustentabilidade do sistema por meio da qualidade assistencial. Passa, também, pela mudança de cultura, deixando de entender os eventos adversos como uma dualidade entre culpado e vítima e aprendendo com as falhas.

É determinante para o sucesso dessa proposta um trabalho conjunto do governo com a iniciativa privada, com objetivo de corrigir as deficiências de estrutura e processo da rede hospitalar brasileira. O estudo propõe como fontes de financiamento:

  • Controle do desperdício da ociosidade de 41,8% dos leitos disponíveis no país;
  • Redução dos eventos adversos graves, 15% dos custos da saúde suplementar;
  • Aumento da eficiência e produtividade no uso do leito hospitalar.

A Agência Nacional de Saúde (ANS), enquanto reguladora do setor, tem papel importante na superação dos índices atuais de insegurança hospitalar, contribuindo com o suporte legal que permita às operadoras selecionar prestadores mais seguros para suas redes de assistência.

Recomendações para o SUS e para o setor suplementar são:

  • Concentrar assistência em número menor de hospitais, de grande porte e alto volume, visando segurança, redução do desperdício e sustentabilidade via aumento de escala;
  • Migrar modelo de remuneração, hoje baseado no fee-for-service, para outros que incentivam a qualidade, como o DRG;
  • Ampliar a transparência e acesso ao usuário às informações de resultados assistenciais.

Acredito que podemos reverter grande parte das deficiências hoje verificadas adotando uma postura de colaboração entre as organizações privadas, públicas, agências reguladoras e produção de políticas públicas.

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