Temos considerado em nossos debates o exercício do chamado ativismo judicial, que se caracteriza por uma interpretação proativa da Constituição Federal, com a tendência de expandir seus sentidos e visando a realização dos seus fins. Essa forma de ativismo envolve controvérsias com o Poder Legislativo e estende a participação do Poder Judiciário nos rumos da sociedade civil. Se por um lado chega a ser saudado por seu viés garantidor de direitos idealizados pelo legislador, por vezes encontra seus limites no espaço de atuação dos demais poderes. Nesse artigo pretendo provocar algumas reflexões que considero necessárias sobre essa forma de atuação na magistratura e propor um posicionamento crítico sobre seus efeitos colaterais.
Inicio nossa reflexão retomando a observação pertinente feita pela advogada Lenir Santos, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e coordenadora do Curso de Especialização em Direito Sanitário do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA), sobre as determinações de caráter mais abrangente da Constituição Federal. É o caso de conceitos como direito à saúde, dignidade da pessoa humana, função social da propriedade e outros temas. Lenir esclareceu que possíveis imprecisões constituem salvaguarda da atemporalidade do texto, e podem ser atualizadas segundo regulamentações e normas posteriores.
A existência dessas cláusulas abertas favoreceu o ativismo judicial – enquanto forma de atuação que muitas vezes vai além daquilo que foi especificado pela letra da lei – desde a democratização do país. Foi sobre esse terreno que se efetivou a conquista da união estável entre pessoas do mesmo gênero sexual, com base no princípio da dignidade humana, prevalecendo essa interpretação sobre a regra anterior que determinava união estável entre homem e mulher. As questões que envolvem costumes são mais fluídas porque eles mudam e o entendimento da sociedade sobre direitos também muda.
Existem outras matérias, entretanto, que são mais complexas e que envolvem conhecimento científico e técnico que não está sob o domínio da magistratura. É o caso de controvérsias que envolvem a saúde suplementar, prevista pelo Art. 199. Em que pese um perceptível movimento de maior respeito aos contratos, com a revisão de ações pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), reconhecendo, por exemplo, a não obrigatoriedade de cobertura pela operadora para medicamentos importados não registrados pela Anvisa, existem situações que suscitam maior polêmica.
Nessa matéria, o ativismo judicial, que pretensamente busca garantir o direito de indivíduos a um tratamento ainda não disponível no Brasil, tem como efeito adverso seu contrário, aumentando a exposição ao risco tanto para o paciente – que já se encontra fragilizado por conta de seu quadro clínico – quanto para os demais beneficiários, que se expõem ao risco financeiro da continuidade do seu plano de saúde. O que explica a discricionariedade desses atos, ainda que bem-intencionados, é a impossibilidade, para o poder judiciário, de abarcar todas as variáveis inerentes a decisões que envolvem conhecimento técnico específico.
Os princípios constitucionais de direito à saúde, na modalidade suplementar, receberam regulações posteriores pela Lei 9.656 e pelas normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No caso dos medicamentos, devem ser observadas também as determinações da Anvisa, que é responsável pelo registro de todos os medicamentos autorizados para comercialização no Brasil. Ao contrário do que o senso comum poderia supor, o registro do medicamento no país de origem é condição mínima, não suficiente para autorização do registro, preservando-se uma salvaguarda tanto para os riscos de estrutura sanitária do país de origem quanto para a verificação dos fatores de aplicação farmacêutica, como o perfil epidemiológico da população.
Acrescente-se também que as agências reguladoras detêm competência normativa para lidar com as políticas de saúde pública, ou seja, a lei não concede apenas o poder administrativo para decisões, mas também determina o conhecimento técnico para o seu exercício. Por essa razão, as deliberações da Anvisa não podem ser simplesmente desconsideradas pelo magistrado sem prejuízos para todas as partes, incluindo principalmente o indivíduo a quem se pretende beneficiar. Sobre o papel da Anvisa, comentei também a importante contribuição do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS).
Concluindo, longe de restringir a atuação do Judiciário em sua capacidade de interpretar e realizar o que foi idealizado pelo legislador – aplicando a lei em sua atemporalidade e segundo as transformações da dinâmica social – penso que o melhor caminho seria de estreitar o movimento de aproximação que já vem ocorrendo entre o setor de saúde suplementar e o poder judiciário, no sentido de oferecer maior subsídio e referências técnicas para a melhor tomada de decisão dos magistrados ante os riscos aqui expostos.