Se usado para uma boa reflexão, com entendimento e reconhecimento das especificidades inerentes aos sistemas de saúde, o ano de 2018, ao menos até aqui, pode ser de fundamental importância para a evolução do segmento no País, seja o público ou o privado. De um lado há o aniversário do importante marco para a regulação da saúde suplementar, a Lei nº 9.656/98, conhecida como Lei dos Planos de Saúde, que acaba de completar 20 anos. Por outro lado, também marca as três décadas da promulgação da Carta Constitucional brasileira, a nossa Constituição, que foi o primeiro documento a colocar o direito à saúde definitivamente no ordenamento jurídico brasileiro.
Datas comemorativas são um convite indeclinável para balanços. Quando falamos em saúde, algo que impacta diretamente na vida de milhões de pessoas, o período se apresenta como uma convocação e exige uma reflexão por partes dos agentes tomadores de decisão. Entender e reconhecer os avanços, problemas e falhas na saúde brasileira é fundamental para que se pensem ferramentas necessárias para garantir a sua perenidade.
Importante, portanto, um breve histórico. Foi com a Constituição de 1988 que a saúde passou a ser um direito do cidadão e um dever do Estado. Ficou determinado que o sistema de saúde pública deve ser gratuito, de qualidade e universal, acessível a todos os brasileiros e/ou residentes no Brasil:
Artigo 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação
É certo que a Constituição Federal garantiu, além do direito à saúde de todos os brasileiros por meio das atribuições do Estado, a oferta de serviços de saúde privada também sob controle estatal. No entanto, a definição de regras só viria com a promulgação da Lei n. 9.656, 10 anos mais tarde.
Se antes a insegurança jurídica advinha do fato de que quem contratava um plano de saúde não tinha uma legislação específica para se proteger – sendo notável a quantidade de ações nos Procons –, a promulgação da lei objetivou amplificar as garantias ao consumidor, o que é louvável, mas impôs novas incertezas ao setor. Por si só, ela já se apresentou imperfeita ao criar uma distinção entre os planos antigos e os novos, firmados a partir de 1º de janeiro de 1999 – com diferentes aspectos, em especial o rol de procedimentos, estipulado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Os planos antigos, por exemplo, não estão sujeitos aos reajustes estabelecidos pelo órgão regulador.
Voltando então ao tema central desse artigo, como apontamos recentemente, por ocasião do Congresso Brasileiro de Direito Médico e da Saúde, organizado pela OAB Nacional em Brasília, assistimos à importante palestra de Nilzir Soares Vieira, promotor de justiça do Ministério Público em Sergipe na área da saúde.
Especialista em saúde pública, Vieira mostrou os diferentes entraves estruturais à consolidação do SUS como política de Estado para a efetivação do direito à saúde no País. Para tanto, apontou conhecidos problemas, como má gestão, corrupção e subfinanciamento e desfinanciamento. Ele apresentou informações que remontam desde a herança da corrupção no período colonial brasileiro até o momento presente em que nunca se falou tanto do termo.
Em sua explanação, o promotor apresentou importantes dados da Organização das Nações Unidas (ONU) que mostram que cerca de 5% de PIB mundial é drenado pela corrupção, e ainda que, no Brasil, estima-se que R$ 200 bilhões são desviados por ano com essa prática. O valor é quase duas vezes o orçamento da União para a saúde.
No que tange ao financiamento, Vieira lembrou a Emenda Constitucional nº 95, também conhecida como “Teto dos Gastos” que, em linhas gerais, institui novo regime fiscal e congela por 20 anos as despesas primárias e investimentos em políticas públicas promotoras de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Os gastos federais só poderão ser corrigidos com base na inflação registrada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e acumulada nos últimos 12 meses. Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimam que ao menos R$ 750 bilhões deixaram de ser investidos no período de vigência dos 20 anos dos gastos com saúde limitados ao índice de inflação.
A reflexão proposta pelo promotor também vale para a saúde suplementar em diferentes aspectos. No que se refere às práticas abusivas, trabalho realizado pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) revelou que aproximadamente 19% dos gastos assistenciais da saúde suplementar no País são consumidos por desvios de conduta e desperdícios. Isso representa cerca de R$ 25,5 bilhões em 2016. Fica claro também o óbvio desajuste das contas quando se solicita que o reajuste dos planos de saúde seja fixado ao índice da inflação geral, como no pedido do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (Idec) em Ação Civil Pública nesse ano. Se no Brasil a inflação médica cresceu, em média, 3,4 vezes acima do índice IPCA em 2017, a sugestão do Instituto pode ser catastrófica para a sustentabilidade do setor.
Divulgado amplamente na última semana, o 2° Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, produzido pelo IESS e pelo Instituto de Pesquisa Feluma, da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, mostrou que, no último ano, 54,76 mil mortes foram causadas pelos eventos adversos graves considerando todo o sistema hospitalar do País – sendo que 36,17 mil poderiam ter sido evitadas. A publicação projetou que esses eventos consumiram R$ 10,6 bilhões apenas do sistema privado de saúde e ainda R$ 14,3 milhões de leitos-dia em função de eventos adversos, sendo R$ 4,7 milhões em razão de eventos adversos graves. Ou seja, a má racionalização dos recursos agrava o problema de subfinanciamento dos sistemas de saúde em todo o país.
Claro que muito evoluiu ao longo dessas décadas. Não se deve, contudo, perder de vista os desafios e a necessidade urgente de revisão e atualização, sejam das práticas ou até mesmo dos marcos regulatórios. A extensa agenda de medidas para o aprimoramento de todo o sistema passa, essencialmente, por mudanças velhas conhecidas de mentalidade e perfil dos diversos envolvidos nos diferentes modelos de saúde do País. Será que iremos comemorar um novo aniversário sem que haja mudanças definitivas? Esperamos que a próxima reflexão, em alguns anos possa ser, de fato, de comemoração.