Recentemente, comentamos sobre o Congresso Brasileiro de Direito Médico e da Saúde, organizado pela OAB Nacional, em Brasília, e sua notável contribuição para a geração de conhecimento capaz de municiar o Judiciário de ferramentas para melhor julgar questões relacionadas ao setor de saúde.
Buscando amplificar o debate em âmbito nacional, demonstramos como a chamada “Crise Sanitária” acende uma luz de alerta nas diferentes áreas para a necessidade de se repensar o modelo assistencial no Brasil ou, ainda, as ações de profissionais da Medicina e do Direito e seus respectivos reflexos no desempenho da saúde brasileira.
Nesse cenário de crise sanitária surge, igualmente, o fenômeno da “’medicalização da vida” e seu efeito colateral, que é a judicialização da vida e das questões de saúde, em que diferentes cidadãos buscam no Judiciário o acesso a medicamentos e terapias não cobertos pelos planos de saúde ou, ainda pior, sequer aprovados pelo órgão regulador no País, a Anvisa.
Entre 2014 e 2016, o total de ações judiciais envolvendo a saúde teve incremento de 243%, segundo o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2016, foram 109,1 milhões de processos no total. Dentre eles, cerca de 1,4 milhão são na área da saúde, ou seja, 1,5% de todos os processos em tramitação no judiciário no País, que envolvem uma ampla gama de tipos de litígio. São desde questionamentos sobre valores dos serviços e reajuste dos planos até indenizações por erros médicos, passando por requerimentos de medicamentos, terapias e outros.
Um dado que mostra claramente a assimetria gerada pelo excesso de ações judiciais foi apresentado por auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). O relatório apontou que no período entre 2010 e 2015, com a compra de apenas três medicamentos de alta complexidade, o governo federal teve um gasto de aproximadamente R$ 1,5 bilhão. Tudo por determinações judiciais. Esse valor é maior do que o recurso utilizado para a compra de todos os outros medicamentos adquiridos por via do Judiciário.
Já na saúde suplementar, estimativa da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) aponta que a despesa com ordens judiciais passou de R$ 558 milhões, em 2013, para R$ 1,2 bilhão, em 2015. Ou seja, mais do que dobrou no período.
Se não bastasse, a enorme profusão de novos procedimentos gera diferentes questões para toda a sociedade: como tomar a correta decisão em benefício do indivíduo e também dos demais? Diante de um orçamento limitado, quais recursos e pacientes serão beneficiados em detrimento de outros? O debate é extenso, com mais perguntas que respostas.
Como o Judiciário tem atuado no que tange à eficácia científica de medicamentos e procedimentos em saúde? Ao autorizar o fornecimento de um medicamento, tratamento ou procedimento, tem considerado os protocolos clínicos existentes e largamente indicados? Mais do que isso, as decisões têm apreciado as particularidades de cada caso clínico e idiossincrasias dos sistemas público e privado? Como tem sido a recepção e aplicação das recomendações do CNJ?
Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que é direito e dever – porque são binômios nessa situação – a indicação de procedimentos e terapias mais adequados ao paciente por meio de observação das práticas clínicas cientificamente reconhecidas, respeitadas de acordo com a literatura e a medicina baseada em evidência – não deixando, claro, de se respeitar a legislação vigente.
É importante, portanto, que o profissional médico tome sua decisão fundamentando-se na efetividade dos diferentes procedimentos. Aqui, a saúde baseada em evidências deve incluir, impreterivelmente, comprovações das diversas áreas, como psicologia, área farmacêutica e outras – pilares importantes do direito à saúde e judicialização. Nessa seara, grandes percepções devem se fazer valer: evidências científicas já existentes, que dão indicações do resultado clínico desejado; julgamento clínico por parte do médico; preferências, orientações e compreensões do próprio paciente; procedimentos autorizados dentro da realidade clínica do paciente.
Todos estes elementos devem ser ponderados na decisão final do profissional da área médica. Mas afinal, diante de uma prescrição médica, como negar um medicamento que foi concedido por decisão judicial apoiada em laudo técnico do profissional de medicina? Via de regra, a interpretação do magistrado é que se o pedido partiu do médico, não é de sua competência ir de encontro à prescrição.
No entanto, é importante um árduo controle de checagem da prescrição médica para comprovar se ela materializa os altos níveis de evidência científica por uma série de fatores. Talvez o maior deles seja que os próprios profissionais da área não levam em conta, muitas vezes, a efetividade dos procedimentos e, tampouco, a realidade dos sistemas de saúde em que estão inseridos.
O debate vai além e cabe, de mesmo modo, maior discussão sobre a aprovação de novas tecnologias por parte dos órgãos competentes, como o Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) e, em especial, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Tema que abordaremos no futuro.
É fundamental reforçar que a decisão médica não deve estar acima da lei e do interesse de determinados indivíduos em detrimento dos demais. Cabe, portanto, que os magistrados se municiem de dados da medicina baseada em evidências para a melhor tomada de decisão.
No Brasil, há iniciativas importantes nesse sentido, como o Nat-Jus, de responsabilidade do Fórum Nacional da Saúde do CNJ. Composto de grupos de profissionais da saúde, como médicos e farmacêuticos, o cadastro tem o objetivo de elaborar notas, respostas e pareceres técnico-científicos com base na melhor eficiência e segurança de medicamentos, procedimentos e terapias. Ainda incipiente, a iniciativa traz fundamentais visões para o Judiciário buscando o coletivo e a evidência técnica médica.
Como bem mostrou o jornal O Estado de S. Paulo nesta semana, os estudos produzidos pelo Hospital Sírio-Libanês, articulador da rede Nat-Jus, são armazenados por meio de sistema informatizado para consulta de magistrados de todo o País. Na reportagem, o juiz federal Gabriel von Gehlen, que atua em vara especializada em casos relacionados à saúde, em Porto Alegre, comentou das difíceis escolhas na área. “Não é fácil decidir, porque o argumento da petição é de vida ou morte: sem o tratamento o paciente morre”, comenta Gehlen. “Ao fazer justiça no caso concreto, acaba-se fazendo uma injustiça global, porque vai faltar dinheiro em outra ponta. O juiz precisa se dar conta dessa carência de recursos”, finaliza.
É importante o entendimento de que o fenômeno é um problema mundial e traz diferentes impactos para os setores, seja do ponto de vista da saúde, tecnologia ou ainda financeiro. É necessário, portanto, que toda a sociedade tenha ciência da importância do uso racional das tecnologias em saúde. Seja no setor público ou suplementar, o custo dessas é de todos.