A Constituição Federal de 1988 declarou a saúde como um direito de todos e definiu, em seu artigo 198, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e, no artigo seguinte, a operação do sistema de saúde suplementar à rede pública. Entendida de tal modo como um direito, compreende-se que exista uma expectativa de atendimento pleno, seja no sistema público ou no sistema privado. A frustração dessa expectativa, principalmente nos casos de medicamentos de alta complexidade, tem sido motivo de judicialização.
Segundo a advogada Lenir Santos, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e coordenadora do Curso de Especialização em Direito Sanitário do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA), palestrante do Congresso Brasileiro de Direito Médico e da Saúde, organizado pelo Conselho Federal da OAB, em Brasília, em junho, a imprecisão do texto constitucional motiva controvérsias, que por essa razão devem ser contidas por outros mecanismos. Tenho refletido sobre as palavras da colega Lenir ao esclarecer que o direito não é absoluto. Em sua exposição, ela ponderou que “Nem o direito à liberdade, que poderíamos pensar ter o exercício mais absoluto possível, não o é, porque encontra limite na liberdade do outro. Então, não há direito absoluto e o direito à saúde também não é absoluto.”
Se mesmo direitos declarados como fundamentais encontram limitações, encontramos uma tarefa compartilhada no discernimento desses limites. Isso é fundamental para que as demandas não sejam avaliadas individualmente de modo discricionário, ferindo o direito de outras pessoas que também necessitam da assistência à saúde. Faz-se necessário construir padrões de racionalização que diminuam a subjetividade encontradas em normas e regulamentos, bem como em valores sociais e econômicos a serem considerados.
O reconhecimento de uma imprecisão no que concerne ao direito à saúde não constitui, diferente do que possa parecer, um prejuízo da Constituição Federal. Ao contrário disso, ela deve ser considerada uma salvaguarda de sua atemporalidade. As determinações, especificações do direito à saúde, são objeto de regulamentações e normas posteriores, a serem atualizadas. Pensando na rede pública, a Dra. Lenir cita algumas balizas fundamentais como o papel da Anvisa, da Conitec, do Ministério da Saúde, das políticas públicas e das regras de funcionamento do sistema. As contenções são necessárias porque o direito à saúde não terá capacidade de abranger todos os procedimentos existentes para os quadros clínicos dos diversos pacientes.
Estendo aqui a reflexão sobre o direito à saúde também para os casos de judicialização do setor de saúde suplementar. A incorporação de novas tecnologias em saúde é atualizada pelo Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, em um ciclo bianual iniciado pelo COSAÚDE (Comitê Permanente de Regulação da Atenção à Saúde), prevendo a realização de reuniões periódicas, discussão sobre a pauta de revisão, análise de documentos e consulta pública. Seguindo esses passos, os medicamentos de alta complexidade são incorporados para os beneficiários das operadoras de saúde.
Mesmo com essas balizas, o impacto da judicialização é alto, pela demanda por medicamentos de alta complexidade que ainda não foram incluídos pelo Rol da ANS. Além disso, ocorrem pedidos até mesmo para casos restritos pela legislação em vigor, como são os medicamentos que não tem o registro na Anvisa ou que sejam prescritos para fim não descrito em bula, assim denominados off label.
Já mencionamos aqui uma auditoria apresentada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que demonstrou que o governo federal gastou aproximadamente R$ 1,5 bilhão com a compra de apenas três medicamentos de alta complexidade, em cumprimento a decisões judiciais no período de 2010 a 2015. De acordo com esse estudo, esse valor superou a compra de todos os demais medicamentos adquiridos no período por via do Judiciário.
Como dito, a incorporação de medicamentos e procedimentos implica sempre em custos e, claro, afeta a capacidade de pagamento dos planos de saúde, que são mantidos por mensalidades dos beneficiários. No modelo aplicado pelo SUS, os órgãos responsáveis como a Conitec e o Ministério da Saúde avaliam tanto a eficiência das inovações quanto o seu custo e benefício se incluídas na rede pública.
Por outro lado, na saúde suplementar são avaliados critérios científicos, deixando de lado os critérios econômicos. Dessa forma, não se pode checar a efetividade dessas inclusões. Faz-se necessário aprimorar os critérios técnicos, regras e processos que embasam essas decisões, porque elas fazem toda a diferença para a continuidade da assistência.
O reconhecimento de parâmetros para a cobertura de medicamentos é fundamental para que as demandas sejam julgadas com maior equilíbrio. Deve-se reconhecer algumas limitações para a garantia de todos os tratamentos em cada caso, considerando o impacto para os demais beneficiários. Desses parâmetros depende a sustentabilidade do modelo.