Abner Brandão Carvalho
O ano é dois mil e vinte e a pandemia do Covid-19, a exemplo do que o (vírus) SARS-CoV-2 faz no corpo humano, instalou-se nas células sociais, replicando seus efeitos nocivos por toda a extensão do organismo brasileiro, já fragilizado por comorbidades de diversas ordens.
A Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) já apontara, acertadamente, que as repercussões da doença não são “apenas de ordem biomédica e epidemiológica”, mas também se expressam por “impactos sociais, econômicos, políticos, culturais e históricos”.
Entendendo que, na seara da saúde suplementar, não seria diferente, a Agência Nacional de Saúde (ANS) tratou de alterar o taxativo rol de procedimentos e eventos em saúde (Resolução nº 428/2017), por intermédio da Resolução Normativa nº 453/2020. A RN nº 428/2017, é sabido, trata do rol de procedimentos e eventos em Saúde, constituintes da referência básica para cobertura assistencial mínima nos planos privados de assistência á saúde.
A Diretoria Colegiada aprovou, em 12 de março, o acréscimo ao Anexo I, da RN 428/2017, o item “SARS-CoV-2 (CORONAVÍRUS COVID-19) – pesquisa por RT – PCR (com diretriz de utilização)” e, ao Anexo II, o item “SARS-CoV-2 (CORONAVÍRUS COVID-19) – PESQUISA POR RT-PCR”.
Aliás, recentíssima Resolução Normativa, a de nº 457, incorporou à cobertura obrigatória, nas segmentações ambulatorial, hospitalar e referência, os testes “Dímero D”, “Procalcitonima”, “Pesquisa rápida para Influenza A e B” e “PCR em tempo real para os vírus Influenza A e B”, além da “Pesquisa rápida para Vírus Sincicial Respiratório e PCR em tempo real para Vírus Sincicial Respiratório”. A ANS destaca que alguns destes testes prestam ao diagnóstico diferencial da Covid-19.
Se a cobertura foi ampliada, em favor do consumidor, por outro lado, a ANS também dilatou os prazos para atendimento ao beneficiário – desta vez, na reunião de 25 de março – com exceção de tratamentos cuja interrupção possa implicar em risco ao paciente.
É também da própria autarquia a orientação que, com relação ao tratamento dos problemas de saúde decorrentes da Covid-19, o consumidor deve se atentar quanto a sua respectiva segmentação assistencial, pontuando que “o ambulatorial dá direito a consultas, exames e terapias; o hospitalar dá direito a internação”.
Chama-se atenção para, de forma breve, relembrar a importância do mutualismo, cuja definição é lembrada por Carlos Jasmim, em publicação pela Associação Médica Brasileira (AMB), como “associação entre membros de um grupo no qual suas contribuições são utilizadas para propor e garantir benefícios aos seus participantes”.
Segundo aponta o Autor, trata-se de “união de esforços de muitos em favor aleatório de alguns elementos do grupo”. Este princípio conversa com o instituto da carência que é, no dizer de Renata Palheiro, o “prazo pactuado no contrato de seguro para que o segurado tenha direito a determinada garantia em face de riscos previstos”.
Pela leitura do Art. 12, V, da Lei nº 9.656/1998, observa-se que cada procedimento possui um tempo de carência determinado. Partindo-se da data da vigência do contrato, o beneficiário contará com a cobertura dos procedimentos, de acordo com o tempo assinalado nas alíneas “a” a “c”. É o Art. 12, aliás, que trata daqueles segmentos mencionados pela ANS.
Renata Palheiro ainda traz importante ensinamento ao afirmar que, no seu entender, a função da carência seria evitar que o beneficiário buscasse sua inclusão no plano de saúde, apenas quando da necessidade de tratamento médico, o que atentaria contra o mutualismo.
Apesar dos prazos da carência, a Lei nº 9.656/1998, em seu Art. 35-C, preconiza ser obrigatória a cobertura nos casos de urgência e emergência. Em 2009, a Lei nº 11.935 ainda acrescentou o inciso III ao referido artigo, incluindo a hipótese de “planejamento familiar”, o que não é objeto da presente abordagem.
Com vistas a tratar da relação entre as segmentações e a cobertura do atendimento nos casos de urgência e emergência, a Resolução do Conselho de Saúde Suplementar (CONSU) nº 13, de 1998, dispõe em seu segundo artigo que, no caso do plano ambulatorial, a garantia da cobertura de urgência e emergência será limitada até as primeiras doze horas de atendimento. Naturalmente, o que se busca é contrabalancear o equilíbrio dos princípios mantenedores da saúde suplementar e os inescusáveis valores constitucionais.
Em abril desta ano, o Núcleo Especializado de Defesa do Consumidor (NUDECON), no uso de suas atribuições, moveu Ação Civil Pública em face das principais operadoras de planos de saúde, questionando a validade das negativas da cobertura de procedimentos em que o beneficiário não tenha cumprido carência, bem como a limitação do prazo de internação, para 12 horas.
Invocou-se a declaração de pandemia, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de 11 de março, a declaração de emergência em saúde pública de importância nacional, pela Portaria nº 188/2020, do Ministério da Saúde e a quarentena decretada no Estado de São Paulo, em 22 de março e prorrogações ulteriores.
Obteve-se do magistrado, após a oitiva do Parquet, a concessão de tutela de urgência para determinar a liberação imediata de cobertura para atendimentos e tratamentos prescritos por médico, sem limitação de tempo para internações, vedando, inclusive, a restrição da cobertura para todo o período de internação que for necessária, para cada paciente, em favor dos segurados infectados pelo coronavírus, ou suspeitos de terem contraído o virus, tudo independentemente de carência de 24 horas.
O douto juiz fundamentou a sua decisão também no reconhecimento da excepcionalidade do momento por todos vivenciados, reforçando que todos os casos, sem distinção, devem ser considerados urgentes.
Não se pode negar a excepcionalidade do momento. Trata-se de uma pandemia sem precedentes na história, sendo certo que o Brasil está muito distante do número de testes que precisa realizar, por dia (o que seria fundamental para a construção do cenário – o mais aproximado possível – do avanço da Covid-19, no país) e o SUS já se encontra em franco colapso. Reconhece-se, também, que cada vida conta e o máximo de pessoas possível precisa ser salva.
Apesar de tudo isso, a atuação jurisdicional também deve se manter ponderada. Ora, observa-se que assim fez a ANS, na medida em que ampliou a cobertura dos procedimentos, com um olhar no beneficiário, mas também viabilizou o atendimento pela rede privada, ao ampliar os prazos de autorização.
O Art. 21 do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) versa que “a decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”. Será que, diante do colapso do SUS, o passo seguinte mais acertado seria contribuir com o colapso da saúde suplementar?
Neste sentido, torna-se pertinente destacar os argumentos levantados por uma das Rés na mencionada Ação Civil Pública, que inaugurou sua exposição reforçando os contornos graves da discussão inaugurada pelo NUDECON e que a rede privada de saúde pública é indispensável para evitar o colapso do SUS.
Em sua manifestação, resgatou os parâmetros legais de balizamento dos atendimentos de urgências e emergências, que consideram as segmentações já expostas na presente abordagem, e apontou que “dar tudo a todos” representaria um grande impacto para “todo um segmento regulado”.
A Operadora Ré ainda trouxe à baila interessante julgado do STJ, de novembro/2018, no qual a Colenda Corte reconhecia a aplicabilidade da Resolução CONSU nº 13, de 1998, quanto à limitação a 12 horas da obrigação de cobertura das operadoras de plano de saúde, nas situações de emergência e de urgência, no segmento ambulatorial. Apesar do verbete da Súmula 597, STJ, a terceira turma entendeu que:
Caso ultrapassado esse espaço de tempo e haja a necessidade de internação hospitalar (atendimento não coberto pelo plano ambulatorial), cessa a responsabilidade da operadora, porém ela deverá zelar para que o paciente seja conduzido para unidade hospitalar (da rede pública ou privada, indicada pelo paciente ou familiar) no qual seja possível o prosseguimento do atendimento hospitalar, se, no local, não houver condições para tanto.
Por trás da preocupação na manutenção da prestação do serviço segundo o contratado, não é difícil de deduzir que o pano de fundo é a manutenção da própria rede privada de saúde, como um todo, que não conta com recursos infinitos.
Aliás, o resultado que se busca alcançar, a partir da decisão em comento, pode ser o exato oposto! Isto porque, colapsada a saúde suplementar, o número de pessoas sem atendimento será ainda maior.
A alta (e imprevista) sinistralidade, com a qual os seguros de saúde estão se deparando, neste período de pandemia (e isto é levantado pela Amil em sua manifestação), só tende a se agravar com a obrigação indiscriminada de cobertura a todo beneficiário munido de laudo médico (também conforme a manifestação). Abala-se, ainda, o mutualismo, aquele pilar fundamental anteriormente ventilado, já que, em se tratando da Covid-19, todos receberão tudo, com o perigo de, em breve, ninguém receber nada.
A discussão analisada encontra-se instalada nos autos do Proc. nº 1029663-70.2020.8.26.0100, que tramita na 32ª Vara Cível do Foro Central Cível de São Paulo, sendo que a decisão que concedeu a tutela de urgência foi objeto de agravo de instrumento, que pende de julgamento, sem a concessão de efeito suspensivo.